Da criança que todos temos dentro de nós...
Tenho saudades de jogar à bola na rua e não ter a noção do porquê de insistirem no “cuidado com os carros”. Tenho saudades de ter os joelhos esfolados do skate, dos patins e dos malhos no campo de futsal em cimento. Tenho saudades de com dois blocos de cimento e uma tábua fazer uma baloiço, de andar de bicicleta sem medo mesmo não chegando com os pés ao chão. De insistir em jogar ténis com uma raquete profissional mesmo não tendo força sequer para a levantar. Tenho saudades de fazer covas na terra e jogar ao berlinde rastejando no chão. Saudades de esconder os carros do mano no congelador ou no quintal. Tenho saudades de me perder nas horas no recreio da escola depois das aulas terminarem. De subir às árvores para roubar fruta. De me esconder nos campos de milho ao jogar à cuca e no dia seguinte ouvir os vizinhos dizer “ai se eu descubro quem andou em cima do milho”. De entrar sem medos no tanque de água gelada e aquilo parecer uma piscina olímpica. De cozinhar apenas em panelas de plástico. De ter um bebé filho/sobrinho/afilhado lindo que só dava trabalho quando nós queríamos e dava-se pelo nome de Nenuco. Tenho saudades de ter a minha cadela pastora alemã a ir-me buscar à escola e proteger-me as costas como ninguém. Saudades de ver a roupa deixar de me servir porque estou em fase de crescimento. Saudades de não ter que ir ao hospital ver ninguém porque aquilo não é lugar para nós. Saudades de não ter a noção do porquê as pessoas seguem caminhos diferentes e não olham mais para trás. Tenho saudades de ter perto, os tios, os primos, o mano, o melhor amigo, as amigas e a minha aldeia ser um Mundo. Tenho saudades de jogar basquete sem ter medo de partir as unhas. Tenho saudades de faltar às aulas só porque o estar a beber finos e a comer tremoços faz muito mais sentido. Saudades da loucura das sextas-feiras à tarde na discoteca. Saudades de ser feliz com uma nota de 500 escudos. Saudade da liberdade que sentia por ter um cartão de estudante com autorização para sair. Saudades de não saber o que são redes sociais. De não ter que andar com telemóvel. E de encontrar sempre quem eu queria onde sabia. De falar sozinha e não acharem que posso estar doente. De cair à noite à cama e adormecer antes mesmo de tirar a roupa e alguém vestir-me o pijama. Tenho saudades de abraçar, beijar e dar as mãos a alguém sem medos, sem maldade, sem segundas intenções. De não entender. De sorrir sempre e só chorar porque o tombo que demos valeu uma grande ferida.
Saudade desta criança que temos dentro de nós que a cada fase que passa perde mais um bocadinho da inocência que caracterizou a nossa infância, a nossa juventude, o início da nossa maturidade e agora nesta seca do ser adulto. Tenho saudades de não saber o que é ter saudades.
Todos temos uma criança dentro de nós e eu tenho saudades da inocência desta minha criança.